Da celebração do futebol ao poder das influenciadoras, um retrato de como o lazer se converteu num instrumento de poder simbólico e económico no continente.
A distração inocente que se torna mecanismo de controlo
O entretenimento sempre ocupou um espaço aparentemente inofensivo na vida social. Uma pausa no trabalho, um momento de leveza, uma necessidade humana de descanso. É o que sociólogos como Zygmunt Bauman chamam de “intervalos de fuga” ou pequenas suspensões do peso da vida pragmática.
Mas, desde Marx ao pensador contemporâneo Byung-Chul Han, existe um alerta antigo: a distração pode transformar-se em alienação quando deixa de ser um descanso e passa a operar como uma fábrica de ilusões que desvia a atenção das contradições reais da sociedade.
Alienação: do truque de mágica ao palco global
Na alienação, explica Marx em Manuscritos Econômico-Filosóficos, o indivíduo perde consciência da sua própria condição material e vive num estado fabricado por forças externas. É o truque do ilusionista: enquanto o público olha para a mão que brilha, a verdadeira operação ocorre no lado oculto do palco.
Hoje, essa operação é sofisticada, global e altamente lucrativa.
Quando o futebol deixa de unir e passa a anestesiar
O fenómeno Messi em Angola e Gabão
Em 2025, Angola gastou milhões de fundos estatais para levar Lionel Messi a um jogo festivo. O Gabão já o fizera anos antes para inaugurar um estádio. A chegada do jogador que foi tratado quase como figura mitológica e mobilizou multidões, abafou críticas sociais e produziu um espetáculo que, segundo analistas como Achille Mbembe, funciona como um “grande ritual de despolitização”.
Para Messi, apenas negócio.
Enquanto isso, os indicadores sociais continuam preocupantes: mortalidade infantil elevada, serviços básicos insuficientes, disparidades gritantes.
O entretenimento, nesta lógica, opera como um óleo que suaviza o atrito entre governados e governantes permitindo que a máquina continue a rodar.
O império das influenciadoras e o poder invisível sobre comportamentos
De Angola para São Tomé: a cultura da imitação global
Entre jovens santomenses, influenciadoras angolanas conquistam espaço equivalente ao de líderes culturais. Sotaques, estéticas, modos de vida e até expectativas de relacionamento são moldados por criadoras de conteúdo que, por sua vez, imitam influenciadoras brasileiras, que imitam influenciadoras norte-americanas.
O ciclo é global, vertical e altamente rentável.
Pierre Bourdieu chamaria isto de dominação simbólica: uma forma de poder que atua não pela força, mas pela internalização daquilo que parece natural ou desejável.Nenhum presidente, nem mesmo no auge do Partido Único, exerceu tanta influência cultural sobre jovens santomenses quanto as influenciadoras angolanas, tenho observado. talvez esteja generalizando por uma questão retórica. Mas a sensação é de que existe uma alienação grave, uma disputa pela mente dos jovens onde o país sai derrotado diante de uma agenda global.
O entretenimento tornou-se o “partido invisível” que legisla o comportamento, o consumo e até o imaginário social.
A advertência de Platão e a fábrica moderna do desejo
Na República, Platão expulsa os artistas por acreditarem que produzem sombras e desviam o povo da verdade. A crítica parece arcaica e até percebemos como a indústria cultural atual molda perceções, desejos e valores de forma profunda.
Hoje, a alienação manifesta-se sob novas formas:
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hiperssexualização como linguagem dominante,
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culto ao corpo e aos objetos,
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romantização de estilos de vida inalcançáveis,
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consumo como promessa de pertencimento.
Byung-Chul Han descreve essa era como a do “psicopoder”: não é necessário reprimir o cidadão — basta entretê-lo.
A África entre a esperança suspensa e o barulho constante
Em vários países africanos, assiste-se a um duplo vazio:
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a perda do nacionalismo crítico das gerações anteriores,
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a ausência de um projeto claro de futuro.
Nesse intervalo, cresce uma sociedade de consumo barulhenta, medicada, saturada por estímulos — onde se idolatra quem explora, se celebra quem acumula e se esquece das condições estruturais que mantêm a maioria na pobreza.
A estética old money romantizada por jovens pobres torna-se um símbolo dessa inversão total de consciência.
Conclusão: o entretenimento como nova pedagogia da submissão
O entretenimento, quando capturado por grandes corporações e elites políticas, deixa de ser descanso e torna-se uma pedagogia subtil de conformismo, ensinando populações a:
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admirar aquilo que as oprime,
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desejar aquilo que nunca possuirão,
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aceitar como natural um sistema que as empobrece,
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confundir consumo com liberdade.
Não se trata de culpar o futebol, a música ou as redes sociais. Mas de revelar a engrenagem que opera por trás do riso, da dança, da distração e do espetáculo.
A pergunta que permanece é simples e profundamente política:
Quando a distração se torna o centro da vida, quem realmente ganha com isso?
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