Estamos a viver uma época em que o medo já não é apenas um sentimento: tornou-se uma infraestrutura invisível, uma tecnologia silenciosa que organiza a vida, o trabalho e até os sonhos das pessoas. Sob a aparência de “gestão”, “produtividade” e “eficiência”, escondemos uma máquina que opera na sombra, uma verdadeira máquina que devora a vitalidade humana e espiritual em nome da sobrevivência. Um sistema que parece ganhar vida e converte mentes criativas em verdadeiros serviçais.
Mbembe diria que o medo é a política que governa corpos, territórios e futuros.
E todos estariam certos.
O medo como forma de governo
A “boa gestão” tornou-se a arte de manter todos suficientemente assustados para produzirem, mas não assustados o bastante para fugirem. É um equilíbrio macabro que revela o fracasso interior da nossa civilização.
O humano reduzido ao algoritmo do medo
Krishnamurti observou que a mente humana está condicionada há milênios.
Hoje, esse condicionamento não é apenas psicológico:
é sistémico, tecnológico, maquínico.
Somos instruídos a acreditar que:
-
se não fores produtivo, deixas de merecer existir;
-
se não corres, ficas para trás;
-
se não entregas, és descartável;
-
se descansas, és suspeito.
O medo tornou-se a moeda espiritual da modernidade.
E o mais aterrador: nós internalizamos o opressor.
O chefe já não está no escritório.
Mora dentro da cabeça.
“Terra é gente” e a gestão esqueceu de viver
Ailton Krenak diz: “Terra é gente.”
Ou seja, não há fronteira entre humano e natureza.
Mas a gestão moderna opera como se fôssemos máquinas separadas do cosmos.
Gerimos projetos, mas não gerimos o espírito.
Gerimos cronogramas, mas não gerimos o sonho.
Gerimos KPI’s, mas esquecemos do céu.
Fomos amputados da vida.
Desconectados do rio, da noite, da dança, do sagrado.
Krenak chamaria isso de humanidade em coma.
E é por isso que temos medo:
porque esquecemos que pertencemos a algo maior do que nossos cargos.
A grande mentira da segurança
O medo nasce da busca desesperada por segurança.
Mas que segurança existe num mundo que está a desabar em crises ecológicas, espirituais e políticas?
Que segurança existe em empregos que desertificam a alma?
Que segurança existe numa vida que perdeu o riso?
A promessa de segurança é o truque mais brutal da gestão contemporânea.
Porque ela pede a tua liberdade em troca de uma proteção que nunca chega.
Krishnamurti diria:
“Quando você busca segurança no que é instável, está a criar a semente do medo.”
E quase tudo no nosso mundo é instável.
Como sair dessa prisão? Não por métodos. Mas por rasgo.
Não há técnica de gestão capaz de libertar o humano do medo.
Porque o medo não é um problema técnico.
É um problema ontológico.
O que precisamos é de um rasgo existencial.
Uma insurreição do espírito contra o condicionamento.
-
Sair da gestão como controle.
-
Entrar na gestão como cuidado.
-
Sair da produtividade.
-
Entrar no encantamento.
-
Sair da lógica do medo.
-
Entrar na possibilidade de estar vivo.
Krenak chamaria isso de adiar o fim do mundo.
Krishnamurti chamaria de libertar-se da autoridade interna.
Mbembe chamaria de recusar o destino imposto pelos dispositivos de poder.
Um novo começo: gestão como um ato poético
Talvez a gestão do futuro não seja um manual.
Seja um ritual.
Não um conjunto de tarefas.
Mas um modo de conversar com o mundo.
Talvez gerir seja:
-
Sentar-se com a equipe como quem se senta em volta da fogueira.
-
Pausar o trabalho para ouvir a chuva.
-
Criar espaços onde ninguém precisa ter medo.
-
Inventar novos futuros que não cabem em relatórios.
Talvez o gestor do futuro não seja um técnico.
Seja um guardião do sonho.
Porque quando o medo desaparece, o humano reaparece.
E quando o humano reaparece, a gestão deixa de ser uma prisão
para tornar-se uma arte de continuar vivo num mundo que tenta nos adormecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário