Ao observarmos os últimos movimentos políticos de Venâncio Mondlane, a sua recente visita a Portugal, o encontro com partidos como Iniciativa Liberal e Chega, e o lançamento mercadológico da marca VM7, somos levados a interrogar não apenas os efeitos práticos dessas ações, mas também os horizontes simbólicos e estratégicos que elas revelam. A pergunta que proponho, com ironia carregada de gravidade, é esta: estaria Venâncio jogando damas em um tabuleiro de xadrez?
A analogia serve a um propósito crítico. No jogo de damas, cada peça move-se da mesma maneira. Não há hierarquia senão a da "dama" final, e o objetivo é eliminar o adversário num embate direto. Já no xadrez, o jogo é marcado por complexidade estrutural, cada peça carrega um papel distinto, e a vitória raramente se dá por confronto direto: ela resulta de estratégia, antecipação e acima de tudo, coerência.
I. A Internacionalização Improvisada: Realpolitik ou Contradição Ideológica?
A ida de Venâncio a Portugal e seu encontro com figuras da Iniciativa Liberal e, sobretudo, do partido Chega, não é um movimento neutro. É uma opção. E como toda escolha política, ela deve ser compreendida à luz das alianças que constrói e dos valores que comunica.
Chantal Mouffe, ao escrever sobre o agonismo político, lembra-nos de que a disputa democrática não é entre amigos, mas entre adversários que partilham um compromisso comum com as regras do jogo democrático. Nesse sentido, alianças com grupos de extrema-direita como o Chega, que propaga uma retórica xenófoba, ultraconservadora e anti-imigração, não apenas ferem esse compromisso, como obscurecem a linha entre adversário legítimo e inimigo da democracia.
Venâncio não é ingénuo. Ele sabe, como todos os políticos modernos, que a comunicação precede a ideologia. Mas ao se aproximar de um partido que representa o backlash europeu contra a mobilidade africana, ele envia sinais ambíguos não apenas ao eleitorado moçambicano, mas à comunidade internacional que o observa como possível renovador de uma democracia em fratura.
Como lembra Antonio Gramsci, “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”. Isto é, o líder político deve formar o senso comum, e não simplesmente reproduzi-lo. Ao legitimar o Chega, Venâncio pode estar tentando mostrar-se pragmático, cosmopolita, aberto ao diálogo, mas o que ensina, nesse gesto, é que vale tudo pelo poder. A pedagogia que se extrai desse gesto é regressiva.
II. A Mercantilização da Rebeldia: O Símbolo Tornado Produto
No outro eixo da sua campanha, Mondlane investe na marca pessoal VM7 . Um número que ressoa como codinome, fórmula publicitária e emblema revolucionário. Nada mais legítimo no mundo contemporâneo, onde a política se faz tanto nos palanques quanto nas redes. Mas o processo pelo qual uma imagem de ruptura se transforma em mercadoria deve ser examinado com cautela.
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, afirma que “tudo o que era vivido diretamente se esvai numa representação”. O símbolo da luta transforma-se em logo; a palavra de ordem vira camiseta; a revolução é embalada como produto de consumo. Em um primeiro momento, isso pode parecer astuto. A marca torna-se veículo de disseminação de ideias, entra nos mercados, viraliza, circula. Mas há um custo.
Nancy Fraser, discutindo a lógica do “capitalismo progressista”, mostra como certos signos de emancipação podem ser absorvidos pelo mercado e desprovidos de seu conteúdo transformador. A marca VM7 corre o risco de tornar-se um avatar vazio: símbolo sem substância, rebeldia sem programa, estilo sem estrutura. A pergunta que o eleitor se fará — mais cedo ou mais tarde — será: VM7 é o quê, exatamente? É um projeto político? Uma hashtag? Um produto?
III. Entre Bauman e Schmitt: Estratégia ou Ambiguidade Moral?
Zygmunt Bauman diria que vivemos em tempos líquidos: os compromissos são efêmeros, as alianças são táticas, e a identidade política é moldada por algoritmos e narrativas mutantes. Nesse contexto, não surpreende que um político como Venâncio se mova por entre espectros ideológicos diversos, flertando com liberais, conservadores e radicais. A liquidez, contudo, exige um lastro que é exatamente isso que parece ausente.
Carl Schmitt, ao falar do inimigo político, lembra que todo regime político se define menos pelos seus amigos do que por quem escolhe combater. Se Venâncio quer ser o rosto da alternativa democrática, então precisa tornar claro quem são os inimigos dessa democracia. Não se trata de ódio pessoal, mas de definição de campo político. Quem tudo abraça, nada enfrenta. E quem nada enfrenta, não lidera.
IV. Considerações Finais: O Risco da Tática Sem Estratégia
A política é, por definição, a arte de fazer escolhas sob pressão. Mas a diferença entre um estadista e um oportunista está na coerência de suas decisões. Venâncio Mondlane tem uma base, um discurso, e um momento. Mas parece, neste instante, embaralhar as peças no tabuleiro e jogar damas onde se exige xadrez.
Uma estratégia de marketing não substitui um projeto nacional. Uma selfie com um político europeu não substitui alianças populares. Uma marca não substitui um movimento. E o mais perigoso: ao tentar tornar-se tudo para todos, pode-se tornar irrelevante para cada um.
Mondlane ainda pode corrigir o rumo. Ainda pode construir pontes sem abrir mão da clareza. Mas para isso, precisa abandonar a lógica da performance e retornar à substância do projeto. Porque a história como o xadrez, não perdoa movimentos em falso.
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