sexta-feira, 30 de maio de 2025

“Chega, mas não entra”: Portugal, a faxina do passado com vassoura do presente

Lisboa, 2025 — O império caiu, mas a arrogância ficou. Entre um brunch vegano em Alfama e um café de especialidade em Marvila, ecoa uma nova epopeia nacional: proteger Portugal da maior ameaça contemporânea — o imigrante que lava pratos, envia remessas e ainda tem a ousadia de sonhar com residência legal.

Não se enganem: não estamos a falar dos magnatas nórdicos que compram casas para o golden visa ou dos nômades digitais que elevam os preços do metro quadrado enquanto geram conteúdo sobre “slow living in Europe”. Não. O inimigo da vez é a senhora angolana que apanha dois autocarros para servir sopa a tempo e horas. O Chega sabe o que faz: transforma o ressentimento popular numa arma política e o racismo institucional numa estratégia de campanha. De megafone em punho, grita-se pela ordem — mas só contra quem já nasceu do lado errado da fronteira e da história.

Colonialismo 2.0: com selo, código fiscal e cartão de contribuinte

Na nova versão do “fardo do homem branco”, Portugal trocou a catequese pela burocracia. Se antes vinha a cruz e a espada, agora vêm o SEF (ou o seu sucessor rebranded, AIMA), as filas para renovar o título de residência, os contratos temporários com salário mínimo e o sorriso hipócrita da inclusão. É o velho jogo da subjugação, com nova embalagem europeia e assinatura digital.

A extrema-direita, romântica como sempre, chora pela pureza da pátria que nunca existiu e denuncia o “revanchismo histórico” africano. Como se o desejo de viver com dignidade em Setúbal fosse uma revanche por séculos de pilhagem, escravização e imposição cultural. Pobres colonizadores cansados — deram tudo e agora recebem... mão de obra que fala crioulo e sabe usar o WhatsApp.

PALOP: parceiros na CPLP, intrusos na porta ao lado

O imigrante dos PALOP é um caso peculiar: é irmão na CPLP, mas vizinho incómodo no T2. É parceiro de cooperação nos relatórios da OCDE, mas fila indesejada no balcão da Segurança Social. Vive o paradoxo lusófono: canta Xutos e Pontapés, bebe Sagres, vê a RTP África, mas é lembrado todos os dias de que está “a mais”.

Enquanto isso, os governos africanos balançam entre o pragmatismo diplomático e a vergonha mal disfarçada. Assinam memorandos, recebem comitivas e celebram o intercâmbio cultural, enquanto seus jovens formados em engenharia trabalham como ajudantes de cozinha no Cacém.

O truque do racismo europeu: ver os pretos, não os patrões

Quando o português branco, empurrado pelo preço da renda e a precarização generalizada, entra num autocarro cheio e só vê corpos negros e árabes, a narrativa cola. É mais fácil culpar quem também está na lama do que olhar para cima e ver quem segura a mangueira de água suja.

Mas não se vêem os suecos com teletrabalho e apartamentos com vista para o Tejo. Nem os fundos imobiliários, nem os chineses com cidadania de papel. O racismo estrutural tem olhos seletivos e memória curta. E o Chega faz disso capital político.

Maquiavel faria contas

Se Fanon nos ensinou a cuspir no opressor, Maquiavel lembraria que cuspir sem estratégia é só desperdício. A verdade é que os países dos PALOP ainda vivem acorrentados não por grilhões, mas por dependências orçamentais, acordos comerciais assimétricos e ilusões diplomáticas. A fragilidade está em tudo: desde a balança comercial negativa até à ausência de soberania monetária.

Não somos tratados como parceiros — somos mantidos como satélites úteis. E isso não é ressentimento, é aritmética. Portugal detém os fluxos de capital, os canais culturais, a tecnologia e a vantagem diplomática. Nós ainda mendigamos cooperação como se fosse caridade.

Enquanto isso, os nossos melhores cérebros migram, as nossas elites se formam em universidades portuguesas e voltam falando como colonizadores reciclados. Continuamos vulneráveis porque confundimos intercâmbio com dependência, e amizade com subordinação. A real independência — a que se expressa em tecnologia, moeda, educação crítica e soberania alimentar — ainda está por acontecer.

E Portugal?

Portugal terá que escolher entre duas nostalgias: a do império ou a da justiça. E, por enquanto, escolheu manter o trono, mas esvaziado de ideias — apenas decorado com saudade e ressentimento. Quer “ordem”, mas não toca nos bancos, nos patrões nem nas grandes construtoras. Quer “identidade”, mas não questiona a desigualdade social. Quer “cultura”, mas exporta fado e importa mão de obra.

Conclusão?

A imigração dos PALOP não é uma ameaça. É uma radiografia. E o que ela mostra é um corpo europeu cansado, hipócrita e viciado em terceirizar culpa.

Se fosse Kissinger a olhar para o continente africano, diria que os afetos são irrelevantes e que o que move as nações é o interesse, não a justiça. A África dos PALOP continua a ser vista como uma zona de influência estratégica, útil enquanto submissa, descartável quando reivindica soberania.

Portugal não precisa amar nem odiar os seus “irmãos lusófonos”; basta manter a vantagem. E manter a vantagem, em termos kissingerianos, significa controlar os fluxos: de mão de obra, de cultura, de recursos. O dia em que esses países africanos perceberem que não precisam da tutela emocional nem da saudade colonial de Lisboa, o jogo muda. E Portugal perde sua posição sem disparar um tiro.

A lição? Quem não tem poder, tem que negociar com frieza. Quem não tem soberania, será sempre um peão no tabuleiro de alguém.

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