Thomas Sowell, esse herege lúcido do século XX, teve a ousadia de apontar o dedo para a vaca sagrada da modernidade: o intelectual. Não o pensador comprometido com a verdade, mas aquele que “fala sem consequências, aconselha sem responsabilidade e escreve sem consequência prática.” Em outras palavras: o especialista em nada com opinião sobre tudo.
Em África, fizemos um upgrade tropical desse personagem.
Aqui, o intelectual se constrói como uma figura quase sacerdotal. Como N’Krumah previa, teríamos que desenvolver uma classe pensante capaz de imaginar a África por si própria. Mas, no lugar disso, desenvolvemos uma classe que pensa sobre a África... como se fosse um projeto acadêmico em alguma universidade ditosa.
É o intelectual anfíbio: está num país africano, mas nada nas águas profundas da teoria ocidental, onde o jargão acadêmico serve como passaporte para relevância. Como dizia Sowell, “há pessoas tão ansiosas para parecerem profundas, que tornam a água turva de propósito.” É isso. Nossos intelectuais estão turvando a água — não para confundir o opressor, mas para manter a sua própria aparência de profundidade.
Veja bem, caro leitor: não é que falte inteligência. O que falta é vergonha na cara.
Os intelectuais do continente, em boa parte, falam em “povo” como se fosse uma entidade exótica, um objeto de estudo — e não como a razão de sua própria existência pública. Alguns acham, inclusive, que o povo é inculto demais para compreender os altos vôos de sua mente iluminada. Afinal, que valor há no batuque local quando se pode citar Kant, ouvir Mahler e assistir uma ópera vienense?
E aqui chegamos ao personagem mais fascinante dessa tragicomédia: o intelectual que odeia o povo.
Esse, sim, é um clássico africano contemporâneo. Ele despreza a fala popular, abomina a música que vem da rua e reviraria os olhos se o convidassem para um ritual tradicional. Para ele, o saber do povo fede a ignorância. Só sente-se limpo no banho grego de Apolo ou na harmonia matemática de Bach — embora confunda Ogun com Obatalá e jamais tenha entrado num terreiro.
Mas nem tudo está perdido: ainda nos resta o intelectual de palco. Ele dá entrevistas. Modera painéis. Publica em revistas com nomes franceses que ninguém lê. Seu maior feito político é ter assinado um manifesto contra alguma coisa no Facebook. É o rei do discurso, mas treme diante da ação. Afinal, a consequência é uma criatura muito vulgar para quem se alimenta de abstrações.
Sowell nos alertou: o problema não é o erro dos intelectuais, mas sua imunidade à realidade. Erram, e não pagam. Erram de novo, e ganham uma bolsa. Erram pela terceira vez, e são convidados para um simpósio internacional.
E o povo?
Esse aprende que a transformação social está sempre adiada. Que não é hora ainda. Que antes é preciso uma mesa redonda, uma pesquisa, um paper. Que mudança verdadeira é algo para depois — ou para nunca.
Enquanto isso, seguimos nessa peça kafkiana onde o intelectual não desce do palco, porque teme encontrar o povo que diz defender. E quando o encontra, faz pose de antropólogo: escuta, anota, mas não compreende.
Afinal, quem pensa demais sobre o povo, muitas vezes se esquece de pensar com o povo.
Por onde devemos ir?
Talvez seja hora de deixar a ironia e assumir a urgência. De lembrar que o verdadeiro compromisso intelectual não é com a estética do pensamento, mas com a ética da transformação. De trocar o aplauso da elite pelo respeito das ruas. E de entender que, em África, o pensamento precisa ser ação — ou será apenas mais uma forma de dominação disfarçada.
Porque o povo, meu caro leitor, não precisa de intelectuais que falem sobre ele. Precisa de aliados que falem com ele — e andem ao seu lado.
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