quinta-feira, 19 de junho de 2025

Relatos de um poeta insular: As Vacas Profanas da Nova Ordem

Daqui, destas terras insulares e pequeninas deste enorme continente — longe da costa e pequenas demais para figurarmos em muitos mapas — fala-vos um privilegiado: filho da união entre os arquipélagos e o continente. De São Tomé, herdei o ceticismo dos que vivem entre marés; do meu pai congolês, recebi a paixão pelo pan-africanismo e a crença profunda de que a nossa liberdade intelectual, financeira e nacional deve ser conquistada todos os dias.

Quero começar narrando os dias atuais a partir de uma história que desafiou meu pensamento internacionalista. Quando a Líbia mergulhava no caos, um grupo de presidentes africanos, através da União Africana, sugeriu ao Ocidente que esperasse um pouco. Eles tentariam uma resolução pacífica. A resposta foi clara: “Se viajarem para a Líbia, vossa segurança estará comprometida.” E todos voltaram para seus países — para os seus salões climatizados — e assistiram, inertes, ao desmoronamento de uma nação que tanto ajudara o continente. A Líbia tornou-se um Titã que engole seus próprios filhos… e agora engole também a nossa consciência. Maldito Chronos.

No meu último ano de licenciatura, no Brasil, vaticinei duas coisas que se tornaram reais — talvez por clarividência ou talvez por evidência: a vitória de Bolsonaro e de Trump. Já então percebia que a esquerda abandonava o materialismo histórico para se perder em identitarismos performáticos, enquanto a direita oferecia soluções simplistas à fome e à segurança pública. O Brasil, na figura de Dória, chegou a propor ração humana para os pobres — uma anedota trágica. E claro, armas para todos, inclusive para os que mal podiam pagar pelo almoço. O pobre passou a se imaginar como um Rambo empreendedor, nutrido a rações de sobrevivência e pílulas espirituais vendidas por gurus digitais e influencers de fé barata.

Veio depois a era dos nacionalismos “interessantes”. As sementes das guerras mundiais voltavam a ser plantadas — só que agora com cobertura em tempo real e pitadas de ironia. As Nações Unidas tornaram-se impotentes. Os seus financiadores passaram a investir diretamente na guerra. E quanto mais os novos líderes supremos falavam em nome de vacas sagradas e impérios imaginários, mais eu entendia o meu lugar no mundo enquanto africano.

Se um líder africano dissesse o que Trump diz sobre o resto do mundo, sofreria bloqueios econômicos e, em última instância, drones moralistas sobrevoando a sua soberania. Fui mais longe: se um país identifica Israel ou os EUA como ameaça — teria, então, o direito de se antecipar e atacar? Fiquei sem resposta.

Pequeno, santomense, no centro do mundo, comecei a acompanhar os discursos do Chega e de André Ventura com certa atenção. Le Pen, Meloni, Orbán, Fico — grandes senhores do nacionalismo europeu, cavando as ruínas da União Europeia. Mas o problema não está aí. Quando Ibrahim Traoré diz as mesmas coisas sobre os recursos do seu país e quem deve ou não explorá-los, vira quase um terrorista aos olhos do Ocidente. Mesmo com dados a apontarem para outro rumo. Nacionalismo é privilégio ocidental; no Sul global, é crime, é ameaça. A não ser, claro, que se chame Kagame e receba os aplausos de sempre, por razões que só o Congo entenderá.

Israel, outrora cordeiro, símbolo das vítimas do século XX, agora repete atos de barbárie contra os palestinos e contra todos os não-judeus da região. Por muito menos, a Rússia foi banida do sistema SWIFT. Israel elaborou uma dieta calórica estratégica para Gaza — um jejum forçado, secura e atletismo fugindo dos escobros e dos mísseis após um aviso prévio. E agora, o primeiro-ministro alemão declara, durante a cúpula do G7: “Das ist die Drecksarbeit, die Israel macht für uns alle.” ("É o trabalho sujo que Israel faz por todos nós.") O céu de Teerã brilha com mísseis. Tel Aviv responde com mísseis. Uma guerra absurda, insana. Iranianos, agora generalizados como “árabes radicais”, mesmo quando o Irã tem representantes judeus no Parlamento. E sobre a Arábia Saudita, o Qatar, os “amigos ricos” — silêncio. A moral é um luxo reservado à conveniência. Joguemos fora a Bíblia. Deixemos que Maquiavel, e não Moisés, nos conduza neste mundo de Leviatãs e senhores da guerra — este mundo órfão de Kissinger.

E meu medo continua. Medo da ingenuidade pan-africana. Em vez de nos tornarmos potência tecnológica e econômica, estamos presos a promessas de reparações que nunca virão. Continuamos sob a marca de Cam — não somos bem-vindos em parte alguma. Nossa cultura, que moldou o mundo, é rejeitada. Depois de 400 anos sob o chicote colonial, o que aprendemos foi ler a Bíblia, louvar o Cristo e engolir a história daqueles que nos dominaram. Acreditamos nas Nações Unidas — nosso “amigo” português grita, mas os financiadores continuam surdos. Confiamos na União Africana, que viu tantos líderes desaparecerem. Ou na China, ou na Rússia... sem jamais termos criado uma nossa cartilha, uma agenda, uma doutrina estratégica como eles têm conosco.

O Ocidente chama de “amigo” quem lhe é útil. E nós, o Sul Global, aceitamos o alimento que nos é dado pela mesma mão que matou o porco da sala ao lado. Este pequeno insular, meio congolês e meio santomense, sabe: não se trata de amizade. Cada país defende o seu interesse — como deve ser. A pergunta é: por que não fazemos o mesmo? Por que não protegemos os nossos interesses? E o eco me responde:

Ivanick, quais interesses?

— Teus amigos estão mais preocupados com classe executiva, marcas de luxo e distrações passageiras do que com a construção de uma África unida e forte.

E eu entristeço-me.

Meu pai ainda reverbera em mim.

Sigo idiota. Sigo idealista. Tentando contribuir com um verso honrando o meu pai e os meus ancestrais.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Os PALOP e o Delírio da Unidade: Um Romance Mal Acabado com Portugal como Narrador

Interlúdio: A nova fraternidade e o voto contra nós

Somos irmãos, sim — quando escolhemos consultores portugueses para projetos que podíamos gerir sozinhos, quando aceitamos que sejam portugueses a intermediar negócios entre financiadores internacionais e países africanos de língua oficial portuguesa, quando abrimos as portas dos nossos governos e das nossas praias a empreendimentos com sotaque europeu e promessas em PowerPoint.

Mas experimentemos nós ir para lá — com ambição, com diploma, com ideias. Aí, os irmãos tornam-se carcereiros. Os novos partidos da extrema-direita europeia — que cresceram confortavelmente sob o silêncio cúmplice da velha esquerda — fazem da nossa presença um incômodo, um perigo, um “problema a resolver”.

E o mais perverso: muitos desses que hoje votam pelo nosso exílio são os mesmos imigrantes que enriqueceram nos nossos países. Fizeram dinheiro em Luanda, Bissau, Maputo e São Tomé, abriram padarias, construíram escolas privadas, conquistaram mercados — e agora, da diáspora, votam com entusiasmo para expulsar-nos de uma Lisboa erguida com ouro brasileiro e suor africano. Uma Lisboa onde a calçada brilha sobre ossadas e a memória se lava com vinho verde.

Somos irmãos, sim. Irmãos num retrato pendurado na parede, mas não no testamento.


A Irmandade num voo de cabeça através da RTP África

“Chamam-se irmãos, mas vivem como vizinhos que não se cumprimentam. E, quando se escrevem, o correio passa por Lisboa.” — se Lumumba estivesse vivo, talvez dissesse isso antes de apagar a luz e desligar a RTP África.

Vamos aos fatos, com a crueza que só a frustração alimenta: os PALOP — essa sigla melancólica que nos vende a imagem de uma fraternidade lusófona africana — não conseguem sequer marcar um voo direto entre si. De Luanda a Bissau, de Maputo a São Tomé, de Cabo Verde a Moçambique, não se constrói nem uma ponte aérea, quanto mais uma ponte de verdade. Para nos encontrarmos, temos de fazer escala em Lisboa, como bons ex-colonizados que ainda precisam do selo metropolitano para garantir o bilhete.

Portugal continua a ser o mediador oficial da nossa comunicação.
Quer saber o que acontece na Guiné-Bissau? Ligue a RTP África. Quer ouvir os debates de Angola? Espere o programa português fazer o “giro dos PALOP”. Somos como filhos que só se conhecem porque a madrasta europeia insiste em organizar jantares familiares. Não há estrutura nossa, canal nosso, nem vontade nossa de nos ouvirmos diretamente.

O PALOP não voa — nem metafórica, nem literalmente

Falamos de integração sul-sul, lusofonia, irmandade histórica... mas somos apenas ilhas emocionais cercadas de passado por todos os lados. A sigla PALOP funciona melhor como desculpa para relatórios da cooperação do que como política pública concreta. Não há bancos comuns, nem redes de universidades integradas, nem linha marítima, aérea ou sequer política que nos una de fato.

O que temos? Palavras. E talvez seja por isso que os PALOP ainda existam — porque são uma invenção sem consequências. É fácil dizer que somos irmãos quando não há exigência de convivência. Nenhum casamento sobrevive sem encontros. E nenhuma comunidade se sustenta se precisa de autorização da antiga metrópole para levantar voo.

CPLP: um clube de chá com sotaques diversos

E se os PALOP falham, será a CPLP a resposta? A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é, em muitos momentos, mais salão do que comunidade, mais vernissage diplomática do que bloco de integração. É onde se serve vinho do Porto, se entrega medalhas e se discursa em português clássico enquanto os voos entre os próprios países-membros continuam passando por hubs europeus. Um espetáculo de cortesia lusitana com pouco impacto na mobilidade, economia ou cooperação prática.

Enquanto isso, a juventude africana lusófona migra para Portugal. Não para Bissau. Não para Luanda. Para Lisboa. Porque é mais fácil e menos penoso. Porque temos mais voos para Frankfurt do que para Maputo. E porque o nosso sonho ainda carrega, envergonhado, o selo “made in Europe”.

Quem lucra com esse silêncio aéreo?

O vazio entre nós não é apenas geográfico: é político. Porque manter os PALOP desconectados mantém cada país pequeno, isolado, vulnerável. E, convenhamos, ninguém gosta de uma África unida e auto-suficiente, ainda mais se falar português e decidir pensar por conta própria.

Portugal continua sendo o grande curador da nossa língua, da nossa imagem e das nossas narrativas. E nós, como bons colonizados emocionais, ainda batemos palmas quando nos convidam para os salões de Lisboa para debater “a importância da cooperação”. No fim, voltamos aos nossos aeroportos vazios, onde nenhuma aeronave voa até ao irmão mais próximo.

O que nos falta?

Falta vergonha. Vergonha de aceitar esse arranjo ridículo.
Falta rebeldia. Rebeldia para romper com o mapa que nos foi imposto.
Falta-nos fazer da língua comum um caminho real, não apenas literário.
Falta-nos dizer: ou voamos entre nós ou deixamos de falar em irmandade.

Porque, sejamos claros: PALOP não é comunidade, é nostalgia. E CPLP, sem coragem política, é apenas um glossário de boas intenções em papel timbrado.

Até lá, seguimos vendo os nossos irmãos pela RTP África, como se estivéssemos todos numa Casa dos Segredos, comentados por apresentadores lusitanos. Esperando um dia sermos notícia... entre uma novela e um noticiário sobre o preço do bacalhau.


Sem Medo, Nada Funciona: a verdade sombria por trás da produtividade

Estamos a viver uma época em que o medo já não é apenas um sentimento: tornou-se uma infraestrutura invisível , uma tecnologia silenciosa qu...