Daqui, destas terras insulares e pequeninas deste enorme continente — longe da costa e pequenas demais para figurarmos em muitos mapas — fala-vos um privilegiado: filho da união entre os arquipélagos e o continente. De São Tomé, herdei o ceticismo dos que vivem entre marés; do meu pai congolês, recebi a paixão pelo pan-africanismo e a crença profunda de que a nossa liberdade intelectual, financeira e nacional deve ser conquistada todos os dias.
Quero começar narrando os dias atuais a partir de uma história que desafiou meu pensamento internacionalista. Quando a Líbia mergulhava no caos, um grupo de presidentes africanos, através da União Africana, sugeriu ao Ocidente que esperasse um pouco. Eles tentariam uma resolução pacífica. A resposta foi clara: “Se viajarem para a Líbia, vossa segurança estará comprometida.” E todos voltaram para seus países — para os seus salões climatizados — e assistiram, inertes, ao desmoronamento de uma nação que tanto ajudara o continente. A Líbia tornou-se um Titã que engole seus próprios filhos… e agora engole também a nossa consciência. Maldito Chronos.
No meu último ano de licenciatura, no Brasil, vaticinei duas coisas que se tornaram reais — talvez por clarividência ou talvez por evidência: a vitória de Bolsonaro e de Trump. Já então percebia que a esquerda abandonava o materialismo histórico para se perder em identitarismos performáticos, enquanto a direita oferecia soluções simplistas à fome e à segurança pública. O Brasil, na figura de Dória, chegou a propor ração humana para os pobres — uma anedota trágica. E claro, armas para todos, inclusive para os que mal podiam pagar pelo almoço. O pobre passou a se imaginar como um Rambo empreendedor, nutrido a rações de sobrevivência e pílulas espirituais vendidas por gurus digitais e influencers de fé barata.
Veio depois a era dos nacionalismos “interessantes”. As sementes das guerras mundiais voltavam a ser plantadas — só que agora com cobertura em tempo real e pitadas de ironia. As Nações Unidas tornaram-se impotentes. Os seus financiadores passaram a investir diretamente na guerra. E quanto mais os novos líderes supremos falavam em nome de vacas sagradas e impérios imaginários, mais eu entendia o meu lugar no mundo enquanto africano.
Se um líder africano dissesse o que Trump diz sobre o resto do mundo, sofreria bloqueios econômicos e, em última instância, drones moralistas sobrevoando a sua soberania. Fui mais longe: se um país identifica Israel ou os EUA como ameaça — teria, então, o direito de se antecipar e atacar? Fiquei sem resposta.
Pequeno, santomense, no centro do mundo, comecei a acompanhar os discursos do Chega e de André Ventura com certa atenção. Le Pen, Meloni, Orbán, Fico — grandes senhores do nacionalismo europeu, cavando as ruínas da União Europeia. Mas o problema não está aí. Quando Ibrahim Traoré diz as mesmas coisas sobre os recursos do seu país e quem deve ou não explorá-los, vira quase um terrorista aos olhos do Ocidente. Mesmo com dados a apontarem para outro rumo. Nacionalismo é privilégio ocidental; no Sul global, é crime, é ameaça. A não ser, claro, que se chame Kagame e receba os aplausos de sempre, por razões que só o Congo entenderá.
Israel, outrora cordeiro, símbolo das vítimas do século XX, agora repete atos de barbárie contra os palestinos e contra todos os não-judeus da região. Por muito menos, a Rússia foi banida do sistema SWIFT. Israel elaborou uma dieta calórica estratégica para Gaza — um jejum forçado, secura e atletismo fugindo dos escobros e dos mísseis após um aviso prévio. E agora, o primeiro-ministro alemão declara, durante a cúpula do G7: “Das ist die Drecksarbeit, die Israel macht für uns alle.” ("É o trabalho sujo que Israel faz por todos nós.") O céu de Teerã brilha com mísseis. Tel Aviv responde com mísseis. Uma guerra absurda, insana. Iranianos, agora generalizados como “árabes radicais”, mesmo quando o Irã tem representantes judeus no Parlamento. E sobre a Arábia Saudita, o Qatar, os “amigos ricos” — silêncio. A moral é um luxo reservado à conveniência. Joguemos fora a Bíblia. Deixemos que Maquiavel, e não Moisés, nos conduza neste mundo de Leviatãs e senhores da guerra — este mundo órfão de Kissinger.
E meu medo continua. Medo da ingenuidade pan-africana. Em vez de nos tornarmos potência tecnológica e econômica, estamos presos a promessas de reparações que nunca virão. Continuamos sob a marca de Cam — não somos bem-vindos em parte alguma. Nossa cultura, que moldou o mundo, é rejeitada. Depois de 400 anos sob o chicote colonial, o que aprendemos foi ler a Bíblia, louvar o Cristo e engolir a história daqueles que nos dominaram. Acreditamos nas Nações Unidas — nosso “amigo” português grita, mas os financiadores continuam surdos. Confiamos na União Africana, que viu tantos líderes desaparecerem. Ou na China, ou na Rússia... sem jamais termos criado uma nossa cartilha, uma agenda, uma doutrina estratégica como eles têm conosco.
O Ocidente chama de “amigo” quem lhe é útil. E nós, o Sul Global, aceitamos o alimento que nos é dado pela mesma mão que matou o porco da sala ao lado. Este pequeno insular, meio congolês e meio santomense, sabe: não se trata de amizade. Cada país defende o seu interesse — como deve ser. A pergunta é: por que não fazemos o mesmo? Por que não protegemos os nossos interesses? E o eco me responde:
— Ivanick, quais interesses?
— Teus amigos estão mais preocupados com classe executiva, marcas de luxo e distrações passageiras do que com a construção de uma África unida e forte.
E eu entristeço-me.
Meu pai ainda reverbera em mim.
Sigo idiota. Sigo idealista. Tentando contribuir com um verso honrando o meu pai e os meus ancestrais.