Em uma tarde éramos especialistas em medicina aplicada ao
COVID-19, no outro dia acordamos verdadeiros especialistas em guerras na Europa.
Os meus amigos levantaram a bandeira da Ucrânia,
revoltaram-se contra a Rússia e Putin. De repente, começaram a surgir vídeos e
artigos sobre como o país que se fez vítima trata os seus emigrantes negros. O
país parece oferecer mais dignidade aos cães que aos africanos. A carne negra
continua sendo a mais barata do mercado. As opiniões ficaram divididas.
Por um lado, o pessoal tropeçou no maniqueísmo mais burro
que existe, dividir entre lado certo e o lado errado. Bem e o mal. Ignoraram por
completo a luta entre os gigantes que sempre existiu desde a guerra fria, desde
a batalha entre OTAN e o Pacto de Varsóvia… tudo resumido em: Putin mau ou OTAN
a malvada. Por outro lado, De repente, zás! O batalhão Azov, o passado neonazista e os ucranianos ganharam feições
diabólicas!
O que me traz aqui são outras questões: porque as nossas
dores não são sequer noticiadas por nós? O que torna a Ucrânia a primeira
página e a explosão em Somália sequer aparecer.
O Que faz a resistência no médio oriente ser terrorismo e na Ucrânia
heroísmo? O que faz o ataque de 11 de Setembro ser mais mediática que vários
ataques em regiões de Congo sequer aparecer nos jornais?
Claro que odiamos a guerra, as misérias que isso arrasta.
Contudo, algumas dores têm direito ao palco das lamentações e outras são
invisíveis. Não consigo entender um santola que passa pelo hospital e assiste
almas caindo no moedor de carne humana e decide colocar uma bandeira de Ucrânia
no perfil enquanto activista de sofá.
No fim, sabemos que não há nenhuma estrutura
fantasmagórica. Nós escolhemos ignorar as nossas dores. A TVS passa mais sobre
a Ucrânia do que os constantes bombardeamentos na costa africana. Quando vejo
um santola falar que a Rússia está comandando uma guerra, eu entendo o seu
ponto de vista, mas não faz sentido. Sempre vivemos em guerra! A paz que acha
que gozamos é só um suspiro de uma criança amedrontada. África só é notícia aqui quando está sendo falada na Europa e América. Por que motivo a América latina e a Ásia sequer faz parte do nosso noticiário?!
Embora ninguém o diga em voz alta, trata-se da posição
social de quem lamenta. É o mesmo esquema da criminalidade e morte num país.
Algumas vidas tornam-se notícias (classe média) e outras vidas são
descartáveis, por fim, a igualdade acaba sendo um recurso meramente matemático,
só existe nas contas. A classe média santola que ignora crianças miseráveis e
esquálidas na capital, doidos nus e jovens desesperados, é a mesma que numa
sensibilidade hipócrita se importa com a guerra na Ucrânia porque os europeus
se interessam também.