sexta-feira, 11 de março de 2022

O que a guerra na Ucrânia diz sobre nós, os santolas.

  

Em uma tarde éramos especialistas em medicina aplicada ao COVID-19, no outro dia acordamos verdadeiros especialistas em guerras na Europa.

Os meus amigos levantaram a bandeira da Ucrânia, revoltaram-se contra a Rússia e Putin. De repente, começaram a surgir vídeos e artigos sobre como o país que se fez vítima trata os seus emigrantes negros. O país parece oferecer mais dignidade aos cães que aos africanos. A carne negra continua sendo a mais barata do mercado. As opiniões ficaram divididas.

Por um lado, o pessoal tropeçou no maniqueísmo mais burro que existe, dividir entre lado certo e o lado errado. Bem e o mal. Ignoraram por completo a luta entre os gigantes que sempre existiu desde a guerra fria, desde a batalha entre OTAN e o Pacto de Varsóvia… tudo resumido em: Putin mau ou OTAN a malvada. Por outro lado,  De repente, zás! O batalhão Azov, o passado neonazista e os ucranianos ganharam feições diabólicas!

O que me traz aqui são outras questões: porque as nossas dores não são sequer noticiadas por nós? O que torna a Ucrânia a primeira página e a explosão em Somália sequer aparecer.  O Que faz a resistência no médio oriente ser terrorismo e na Ucrânia heroísmo? O que faz o ataque de 11 de Setembro ser mais mediática que vários ataques em regiões de Congo sequer aparecer nos jornais?

Claro que odiamos a guerra, as misérias que isso arrasta. Contudo, algumas dores têm direito ao palco das lamentações e outras são invisíveis. Não consigo entender um santola que passa pelo hospital e assiste almas caindo no moedor de carne humana e decide colocar uma bandeira de Ucrânia no perfil enquanto activista de sofá.

No fim, sabemos que não há nenhuma estrutura fantasmagórica. Nós escolhemos ignorar as nossas dores. A TVS passa mais sobre a Ucrânia do que os constantes bombardeamentos na costa africana. Quando vejo um santola falar que a Rússia está comandando uma guerra, eu entendo o seu ponto de vista, mas não faz sentido. Sempre vivemos em guerra! A paz que acha que gozamos é só um suspiro de uma criança amedrontada. África só é notícia aqui quando está sendo falada na Europa e América. Por que motivo a América latina  e a Ásia sequer faz parte do nosso noticiário?!

Embora ninguém o diga em voz alta, trata-se da posição social de quem lamenta. É o mesmo esquema da criminalidade e morte num país. Algumas vidas tornam-se notícias (classe média) e outras vidas são descartáveis, por fim, a igualdade acaba sendo um recurso meramente matemático, só existe nas contas. A classe média santola que ignora crianças miseráveis e esquálidas na capital, doidos nus e jovens desesperados, é a mesma que numa sensibilidade hipócrita se importa com a guerra na Ucrânia porque os europeus se interessam também.

Por fim, sabemos que a guerra é um desastre humanitário, abominamos a guerra. Não se trata de quem tem razão, cada um possui suas razões para isto ou aquilo. O que me intriga é como assistimos a queda aqui do lado, mesmo aqui no Gabão sem que passe nada nos nossos noticiários. Como assistimos à indiferença negra sobre os próprios assuntos. Como as nossas fontes acabam sendo o que CNN, RTP, BBC e Le Figaro elegem como importante. Precisamos criar nossa própria epistemologia!

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